Estudos revelam que a cloroquina e a hidroxocloroquina não são eficazes no tratamento da Covid-19 e podem causar problemas de saúde graves.
A infectologista do Hospital Emílio Ribas e membro da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) Rosana Richtmann começa a entrevista me corrigindo, quando lhe pergunto se é contra ou a favor do uso da cloroquina para tratar Covid-19. “Não dá para ser contra ou a favor de um medicamento. É preciso analisar sua indicação dentro de determinado cenário.”
A observação da médica faz todo o sentido. Diante de uma pandemia de extrema gravidade como a que estamos enfrentando, que já matou mais de 300 mil pessoas até o fim de maio de 2020, é preciso deixar claro: o que deve indicar ou não o uso de um medicamento é a ciência, e não opiniões pessoais.
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A ciência, no entanto, tem um tempo próprio, que poucas vezes na história foi tão antecipado como agora, graças ao empenho de pesquisadores e governos do mundo todo em descobrir como tratar e evitar a doença. Mesmo diante da rapidez que a tecnologia atual permite, não é possível pular as fases que o conhecimento científico exige.
A Covid-19, no entanto, não respeita o tempo da ciência. O Sars-CoV-2, vírus que provoca a doença, é altamente contagioso, tem uma taxa de mortalidade de cerca de 4%, segundo estudos, e pode causar sintomas graves, que exigem internação e intervenção intensiva prolongadas em muitos casos, em especial entre aqueles com mais de 65 anos.
Diante da urgência, quando a cloroquina, droga já conhecida, barata e usada para tratar malária e determinadas doenças reumatológicas, como lúpus eritematoso sistêmico, mostrou efeito contra o Sars-CoV-2 em laboratório, especialistas ficaram animados. “Médicos prescreviam convictos de que estavam fazendo o melhor. Mas depois de quatro meses, com mais estudos e informações, vimos que o medicamento não serve nem para profilaxia [prevenção] nem para tratamento da Covid-19”, afirma a dra. Richtmann.
“Embora a cloroquina tenha efeito contra a Covid-19 in vitro, os estudos feitos em pacientes cada vez mais consistentemente mostram que a medicação não apenas não funciona, mas pode fazer mal”, explica a infectologista Vivian Avelino-Silva, professora da Faculdade de Medicina da USP e da Faculdade de Medicina do Einstein.
Diante disso, causou espanto entre médicos e associações de especialistas quando o Ministério da Saúde (MS) lançou, em 20/5/2020, um protocolo com recomendações para tratamento precoce da Covid-19 com cloroquina e hidroxocloroquina.
Segundo o MS, os pacientes devem assinar um termo de ciência e consentimento antes de usar os medicamentos, pois “não há, até o momento, estudos suficientes para garantir certeza de melhora clínica dos pacientes com Covid-19, quando tratados com cloroquina ou hidroxicloroquina”.
As recomendações, inicialmente, foram veiculadas sem assinatura, o que não costuma ocorrer. No dia seguinte, a nota apareceu no site do MS assinada por técnicos do Ministério.
A Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI) lançou parecer em que afirma que “ainda é precoce a recomendação do uso deste medicamento na Covid-19, visto que vários estudos mostram não haver benefícios para os pacientes que utilizam” os medicamentos.
A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) foi na mesma linha. “Os estudos clínicos atuais com cloroquina ou hidroxicloroquina, associada ou não à azitromica [antibiótico usada para tratar infecções bacterianas], permitem concluir que tais medicamentos, até o presente momento, não mostram eficácia no tratamento farmacológico de Covid-19 e não devem ser recomendados de rotina”, diz em parecer científico.
O Conselho Nacional de Saúde (CNS), instância deliberativa e permanente do Sistema Único de Saúde (SUS), também se coloca contra o documento do MS, salientando, ainda, que há riscos para os pacientes.
“O que mais me preocupa dessa orientação do Ministério da Saúde é a recomendação de dois medicamentos com conhecido efeito colateral no coração ,sem evidência até o momento de benefício algum. Quando se orienta esse tratamento com baixíssima probabilidade de ter algum benefício para casos leves, pacientes estarão sob risco fora do ambiente hospitalar, sem monitorização adequada. E isso no meio de uma pandemia, quando o sistema está sobrecarregado”, afirma o dr. Otávio Ranzani, médico intensivista da FMUSP e do Instituto de Saúde Global de Barcelona, na Espanha.
Estudo
No dia 22/5/2020, a prestigiada revista científica “The Lancet” publicou o estudo que faltava para aqueles que, mesmo com todos as pesquisas e informações, ainda apostavam na cloroquina para tratar a Covid-19.
Feito com mais de 96 mil pessoas internadas em 671 hospitais de seis continentes entre o fim de dezembro de 2019 e abril de 2020, o estudo revelou que não apenas não havia benefício, como houve aumento do risco de morte para pacientes tratados com as drogas.
Os 15 mil pacientes que receberam o tratamento estavam hospitalizados, mas nenhum em ventilador mecânico (aparelho que ajuda pacientes graves a respirar); todos haviam recebido o diagnóstico da doença até dois dias antes do início do tratamento.
Os pacientes foram separados em quatro grupos, que receberam: 1) cloroquina; 2) cloroquina + antibióticos macrolídeos (como a azitromica); 3) hidroxicloroquina; 4) hidroxicloroquina + antibióticos macrolídeos.
O estudo concluiu que, além de não trazer nenhum benefício aos pacientes, as quatro combinações de tratamentos causavam aumento da mortalidade e da ocorrência de arritmias cardíacas ventriculares. Os pesquisadores afirmam que os achados do estudo sugerem que essas drogas devem ser usadas apenas em estudos clínicos, e que são necessários mais estudos randomizados (feitos com grupos cujos participantes são escolhidos de forma aleatória, muito importantes para a ciência) para garantir a segurança e a eficácia do tratamento.
OMS
A Organização Mundial da Saúde (OMS) é responsável por coordenar um desses estudos que busca encontrar evidências científicas para o tratamento da Covid-19. O Solidarity, realizado em vários países, incluía a cloroquina e a hidroxicloroquina entre as drogas testadas.
Após o estudo da “The Lancet”, no entanto, a OMS interrompeu temporariamente, em 23/5/2020, as pesquisas envolvendo as droga. Outros braços do estudo, que testam outros medicamentos, continuam.
No Brasil, o fato de o presidente da República Jair Bolsonaro insistir em recomendar, apesar de todas as evidências científicas, o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina para tratar a Covid-19 causou o pedido de demissão do então ministro da Saúde Nelson Teich em 15/5/2020.
O Exército Brasileiro prometeu liberar mais de 1 milhão de comprimidos das drogas para o MS, e os Estados Unidos doaram 2 milhões de doses, embora o Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) americano tenha retirado do seu site, no início de abril, a recomendação do uso das drogas e a maioria dos hospitais do país não use mais os medicamentos em casos de Covid-19.
Apesar das evidências científicas e de países como a França, Bélgica e Itália suspenderem os estudos com cloroquina e hidrocloroquinacontinua, o presidente da República segue recomendando o uso das drogas para tratar a Covid-19.
É de se pensar que a mobilização de recursos e estratégias coordenadas para a distribuição da droga poderiam ser utilizados a favor de medidas que beneficiassem os brasileiros, em meio a uma crise sanitária sem precedentes. Desde que fossem comprovadas cientificamente, é claro.
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